Abadiânia ostenta a quarta maior arrecadação turística de Goiás. De acordo com a Agência Estadual de Turismo (Goiás Turismo), o município de quase 16 mil habitantes perde apenas para Rio Quente, Caldas Novas e Anápolis. A atração responsável pelo faturamento local é a Casa Dom Inácio de Loyola, criada pelo médium João Teixeira de Faria, o João de Deus, em 1976. Os trabalhos de passe, limpeza espiritual e consulta ali realizados são o elo causador da movimentação semanal de aproximadamente 5 mil pessoas pelas ruas do município.
Na segunda-feira, 7, completa um mês desde que as acusações de abuso sexual contra o médium foram ao ar no programa Conversa com Bial, da Rede Globo, e ganharam repercussão mundial. Para entender melhor o impacto dessa avalanche que atingiu o comércio local, a reportagem do Jornal Opção visitou as ruas de Abadiânia, conversou com turistas, comerciantes e, claro, com aqueles que atualmente tocam os trabalhos da Casa na ausência de seu líder.
“Antes, recebíamos uns 5 mil visitantes por semana. Agora, estamos com uma média de 1.350”, conta Chico Lôbo, um dos voluntários que trabalha na recepção dos fiéis que visitam a Casa Dom Inácio de Loyola. “Não há mais trabalho de consulta. Este, só o João pode fazer”, justifica a baixa movimentação, predominantemente estrangeira nos últimos dias. Apesar do número de visitas ter despencado recentemente, a Casa permanece aberta para que público entre e faça suas orações.
Guia, médium e voluntária, Jacilda Oliveira diz ter contabilizado diversas caravanas. “Já cheguei a contar 35 ônibus aqui na porta. Eram muitos visitantes”, lembra. Ela, que trabalha voluntariamente na Casa desde 1987, diz que todos estão tristes com o paradeiro do médium e assegura: “Aqui, nós só recebemos amor”.
Jacilda Oliveira: “Já cheguei a contar 35 ônibus aqui na porta” I Foto: Fernando Leite/Jornal Opção
Mas não só do amor vive o comércio de Abadiânia, que foi impactado após os relatos de abusos. “As vendas da minha loja caíram em 90%. Temos visto muitas pousadas fechando e muita gente desempregada”, contou uma comerciante local que preferiu não ser identificada. Ela explica que alguns comércios “estão resistindo”, como o dela, que se mantém aberto na esperança de dias melhores para o município. “Estamos aguardando para ver o que irá acontecer nos próximos meses. Não sabemos se o médium voltará a atender. Enquanto isso, estamos estagnados. Se não melhorar, com certeza migrarei meu negócio para outra cidade.”
Nas proximidades da Casa, pode-se encontrar loja de roupas, pedrarias, acessórios, hotelaria, lanchonetes e restaurantes. Apesar da queda nas arrecadações de todos eles, os proprietários mais esperançosos seguem na expectativa de que a situação seja revertida a partir de fevereiro deste ano. Isso porque, normalmente, o movimento local começa a se alavancar neste período. “Mas tenho minhas dúvidas se as coisas vão mudar”, relata o dono de uma lanchonete.
Ele conta que abriu seu negócio há mais de dois anos e que, até então, tudo estava indo bem. “Muitos estrangeiros já estavam aqui na cidade antes de surgirem as polêmicas. Normalmente, eles se hospedam por um período de 30 dias. Agora, estão começando a voltar para seus países. E, sinceramente, não sei se eles voltarão aqui.”
O dono da lanchonete considera ter levado uma “rasteira”, assim como os demais colegas que investiram no comércio local nos últimos anos. “Aqui era muito movimentado e todo mundo apostou sem esperar que isso poderia acontecer.
Número de visitantes cai drasticamente nas últimas semanas I Foto: Fernando Leite / Jornal Opção
O proprietário lamenta, ainda, a falta de oportunidades na cidade e assegura que 90% do faturamento do município gira em torno do nome do médium. Ele, que já trabalhou como chefe de cozinha em Brasília, teme não haver mais dinheiro circulando na cidade. “Se isso acontecer, terei que fechar meu comércio. Não descarto a possibilidade de voltar à Brasília em busca de melhores oportunidades.”
O prefeito da pequena Abadiânia, José Aparecido Alvez Diniz (PSD), já sente o impacto econômico das denúncias contra o médium. Conforme disse cerca de duas semanas atrás, ao menos 150 funcionários de pousadas e hotéis haviam sido demitidos — a prefeitura do município assegura o funcionamento de 69 pousadas e hotéis, mas o número pode chegar a 90 se levadas em conta as residências transformadas em pensões improvisadas.
O prefeito alegou que não há um balanço oficial, pois as demissões não são informadas à prefeitura. Porém, há uma estimativa informal a ser considerada. Diniz ressaltou também que a Casa, que funciona como hospital espiritual e templo ecumênico, gera aproximadamente 1,2 mil postos de trabalho no município. José Aparecido foi procurado pela reportagem na tentativa de atualizar estes números. Mas, até o fechamento da reportagem, as ligações não foram atendidas.
Um sinal
Pousadas abrigam turistas que buscam conhecer a Casa Dom Inácio de Loyola I Foto: Fernando Leite/Jornal Opção
Proprietária de uma das diversas pousadas de Abadiânia, Celia de Melo Oliveira contou ao Jornal Opção que possui o negócio há mais de seis anos. Porém, seu funcionamento não deve passar do mês de janeiro. “Já vendi quase todos os móveis. Faltam apenas alguns que ainda restaram para fechar de vez a pousada. Me dispus a ficar aberta este mês, mas já estou quase parando”, sublinha. Ela conta que, desde o surgimento dos escândalos, não houve mais reservas. “Sem contar que as pessoas que já haviam reservado ligaram depois para cancelar”.
Célia, que também é médium e “filha” da Casa Dom Inácio de Loyola, diz ter encarado os acontecimentos como um sinal para que dedicasse seus esforços exclusivamente à Casa que frequenta há 26 anos. “Não poderia abandoná-la neste momento de dificuldade. Agora, irei dedicar todo o meu trabalho à Casa Dom Inácio de Loyola. Estamos tristes, mas na expectativa de dias melhores. Torço para que a verdade prevaleça.”
Para Célia, a impressão que se tem é que o movimento deve diminuir ainda mais, apesar de ela também esperar por dias melhores. Moradora do município há mais de duas décadas, a médium possui nove netos nascidos em Abadiânia e assegura: “Muitos nos criticam sem nos conhecer. Falam mal de todos da cidade. Mas não somos esse bicho que estão disseminando por aí.”
Fé inabalável
Natural de Belo Horizonte, Lu Pereira mora em Nova York, nos Estados Unidos, há mais de 20 anos. Chegou à Abadiânia na última quarta-feira, 4, e assegura que voltará para solo americano completamente “realizada”. “Sou uma espiritualista e cheguei aqui em busca de boas energias. Antes de vir, rezei e meditei muito sobre o assunto. Fiquei com medo, mas creio que isso tenha ocorrido por influência das pessoas e da mídia. Não sei a verdade dessa história, mas o fato é que as entidades continuam trabalhando.”
Lu Pereira: “Quando fiquei sabendo de tudo, não me senti mal. Mas me questionei se deveria, de fato, vir até aqui” I Foto: Fernando Leite / Jornal Opção
Ela conta que uma colega americana visitou o Brasil para conhecer João de Deus e relatou ter vivido grandes experiências em Abadiânia. “Eu já tinha ouvido falar e visto reportagens sobre o lugar anos atrás. A partir dessa conversa com minha colega, achei que me faria bem visitar o local e renovar minhas energias.”
Lu Pereira conta que reservou sua passagem em meados de setembro, cerca de dois meses antes das primeiras denúncias contra o médium. “Quando fiquei sabendo de tudo, não me senti mal. Mas me questionei se deveria, de fato, vir até aqui. Acredito que ele realmente tenha o dom, tendo em vista que muitas curas permanecem inexplicáveis. Porém, tenho consciência de que ele é humano e, consequentemente, passível de erros,” explica a mineira que, “independentemente do caso João de Deus”, recomenda a experiência a todos aqueles que tiverem vontade de conhecer o lugar.
A médium Jacilda Oliveira, citada no início da reportagem, também contou o que a levou permanecer contribuindo com a casa Dom Inácio de Loyola mesmo depois de todas as acusações: “Eu morava em Brasília e tive um problema que ninguém foi capaz de diagnosticar. Até a água que bebia eu vomitava. Procurei a casa e, logo na primeira visita, uma entidade se comprometeu a me ajudar. Um dia ela falou para um dos meus familiares que eu estava curada e nunca mais teria nada. Desde então, permaneço aqui e faço tudo por amor”.
Relembre o caso
Centenas de denúncias contra o médium João de Deus foram protocoladas junto ao Ministério Público desde a exibição do programa comandado por Pedro Bial. Menos de dez dias depois, o líder espiritual foi preso por suspeita de praticar abusos sexuais durante tratamentos espirituais em Abadiânia, localizada a cerca de 90 quilômetros de Goiânia.
Durante seu depoimento ao MP, no dia 26 de dezembro, João de Deus relatou sofrer disfunção erétil devido ao câncer que teve no estômago ao contestar parte dos relatos das supostas vítimas de assédio sexual.
A defesa do médium ressaltou que ele teve que falar de sua intimidade para demonstrar que, ainda que quisesse, não teria condições de realizar tais abusos. “Fisiologicamente, de saúde, ele não tem condição”, relatou seu advogado, Alex Neder.
O líder espiritual permanece preso no Núcleo de Custódia do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia.