domingo, 5 de março de 2017

Na Grande Goiânia, 86 pessoas em situação de rua foram mortos nos últimos anos. É o que aponta levantamento realizado pelo Mais Goiás.


Após a chacina de três homens e uma mulher na noite do último dia 28 de fevereiro, o número de assassinatos de pessoas em situação de rua aumentou para 86, desde 2012. O levantamento é feito com base em dados da Secretaria de Segurança Pública e Administração Penitenciária de Goiás (SSPAP), que tem os assassinatos investigados pela Delegacia Estadual de Homicídios. A confirmação de que as vítimas estavam em situação de rua é feita sempre por órgãos que dão assistência às pessoas nessa condição. Há pelo menos 2 mil nas ruas em toda Região Metropolitana. Em nenhuma cidade do País inteiro há registro de tantas mortes de pessoas nessa situação.
Até a manhã desta sexta-feira (03), a polícia só conseguiu identificar dois, dos quatro que foram mortos. O crime aconteceu na noite da última terça-feira (28/02) , debaixo da ponte da Avenida Castelo Branco, no Setor Esplanada dos Anicuns. O Corpo de Bombeiros foi acionado e atendeu a ocorrência com todas as vítimas por disparos de armas de fogo, segundo informou a corporação, que não tinha as identidades das vítimas – três mortas no local. Um homem ainda chegou a ser levado para o Hospital Otávio Lage (Hugol), na Região Noroeste de Goiânia.
No meio da manhã da última quarta-feira (1/03), a confirmação da morte dessa última vítima chegou à imprensa por meio da Assessoria de Comunicação do hospital. A Polícia Civil informou que apenas duas vítimas foram identificadas. São elas Lidiane Marques da Silva, 35 anos, e Flávio Soares Reis, de idade não informada.
MORTES
Em 2012 aconteceu em Goiânia a primeira morte. No dia 11 de agosto, à esquina da Rua 68 com Avenida Independência, no Centro da Capital, Matheus Stéfany Rodrigues Carvalho, 22, estava debaixo de uma marquise quando foi executado a tiros. A investigação da Polícia Civil apontou como autor o policial militar Rogério Moreira da Silva, o Zinca. Em 2015 o militar foi sentenciado com 16 anos de prisão pelo crime. A promotoria, na época do julgamento, sustentou a tese de que o policial era fornecedor de drogas e que a vítima era “aviãozinho” do tráfico e tinha dívidas com o policial.
Desde esse episódio na literatura policial goiana, outros fatos se repetiram. Um dos autores de assassinatos de pessoas em situação de rua, Tiago Henrique Gomes da Rocha, já foi sentenciado em quatro casos. Tiago ficou conhecido como o serial killer de Goiânia. Em cinco assassinatos de pessoas em situação de rua, a Polícia Técnico Científica de Goiás, por meio do Laboratório de Balística identificou que a arma usada era a mesma – isso colocou Tiago na cena desses crimes, inclusive dois casos em que as vítimas dormiam na porta de comércios, sistemas de monitoramento flagraram o momento exato do ataque.
LIMPEZA
Coordenador do Movimento Nacional de População de Rua em Goiás (MNPR-GO), Eduardo de Matos Cheruli, confirma o número de mortes e ainda conta que em Goiânia há uma tentativa de limpeza social. “São pelo menos duas mil pessoas na Grande Goiânia que estão à margem dessa sociedade, não recebem sequer uma assistência multidisciplinar do município e buscam meios de se manter. A droga, em maioria das vezes, é o caminho mais fácil de driblar o frio, a fome e o abandono”, conta.
Em maio de 2016, após a extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, no governo de Michel Temer, o Centro de Referência em Direitos Humanos de Goiás, sem recursos para atender a essa população, fechou as portas. O órgão atendia à população de rua e às crianças e adolescentes em Centros de Internação depois de cometerem atos infracionais, além de acompanhar pessoas que lutavam por medicamentos, tratamento cirúrgico e ambulatorial e não tinham a assistência que precisavam.
Na tentativa de lutar contra essa violência que só cresce contra essas pessoas, Eduardo de Matos disse que ontem foi realizada uma reunião com o Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos e do Cidadão (CAODHC) do Ministério Público Estadual de Goiás (PM-GO). “Vamos pedir para que seja cumprida pelo Município a Lei Municipal de Março de 2016 que institui integrar órgãos de educação, saúde e assistência social para amparar essa sociedade, por meio do Centro de Referência, hoje dado como extinto.”
Eduardo denuncia que em dezembro do ano passado a segunda Casa de Acolhida Cidadã de Goiânia foi inaugurada. Mas até hoje não funciona. “A nova administração tem a ideia de que não precisa. Mas se houvesse esse atendimento, essas pessoas não estariam debaixo da ponte e não tinham morrido; em contrapartida, estão lá os colchões, as camas, e a casa fechada, ao lado da Catedral Metropolitana”, lamenta.
VULNERABILIDADE
Psicólogo forense, Leonardo Ferreira Faria acredita que esse tipo de cidadão que chega a ir para as ruas está ligado a três grandes grupos: pela rejeição familiar, onde encontra violência física e sexual dentro do ambiente familiar e resolve abandonar tudo isso, mas se frustra quando deixa a casa da família e acaba vivendo nas ruas; além disso, o dependente químico, que pode usar drogas lícitas ou ilícitas e ter acesso sempre que precisar à casa onde mora toda a família. E também o doente mental, que passa o dia inteiro na rua e vez ou outra volta para casa.
A sociedade vê essa parcela social como uma escória. “São chamados de loucos, de bêbados, de drogados, de coitados e de vagabundos preguiçosos”, completa o especialista. Neste contexto, o psicólogo explica que uma identidade urbana se cria e exclui totalmente a verdadeira identidade individual das pessoas, ou seja, elas deixam de ser o que eram antes no seu ambiente familiar para serem chamados de ‘moradores de rua’ – termo que deixou de ser usado, porque as pessoas não moram na rua, elas estão em situação de rua.
Em termo de violência contra essa sociedade, Leonardo explica que a pessoa em situação de rua é associada diretamente com a criminalidade, com a delinquência e com o uso de entorpecentes. Isso o transforma diretamente em uma ameaça – ainda que não seja – para a população. “Vai causar a repulsa, a violência contra eles. Tanto verbalizações hostis quanto à violência física e até a morte. O comerciante sabe que se tiver um mendigo na porta de sua loja ele não vai vender tanto, então vai dar um jeito de se livrar daquilo que o faz perder seu objetivo”, conta.
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