Estado é considerado estratégico para facções, que expandem seus tentáculos pelo interior em busca do poder na rota do tráfico
Um fuzil 5.56, uma espingarda calibre 12, quatro pistolas 9 milímetros com kit rajada e mais de 200 municípios. O arsenal, que pode ter sido usado em 50 homicídios, foi encontrado na sexta-feira, 12, pela Polícia Civil de Goiás.
Seis homens, quatro deles cumprindo pena no sistema prisional de Goiás, envolvidos em pelo menos dez homicídios, presos pela Polícia Civil na quarta-feira, 10.
Quatro homens invadem o hospital municipal de Caldas Novas, no dia 20 de março, fazem médicos e enfermeiros reféns e tentam matar Francivaldo Bezerra Malhão. Internado para se recuperar de um ferimento à bala, Malhão consegue fugir, mesmo monitorado por uma tornozeleira eletrônica.
Nove mortos, 14 feridos, 106 foragidos da Colônia Agroindustrial do complexo prisional de Aparecida de Goiânia, na Região Metropolitana do Estado, no dia 1º de janeiro de 2018. Um dos maiores massacres dentro de presídios já registrados em Goiás.
Duas siglas, que são evitadas em declarações públicas pelas autoridades policiais e pela imprensa, unem esses quatro casos de violência explícita: PCC (Primeiro Comando da Capital) e CV (Comando Vermelho). As duas, que travam um duelo sangrento em todo o território nacional, também marcam, com sangue, o seu território em Goiás.
Relatório do Ministério da Segurança Pública estimou, no final de 2018, que as duas facções tinham, juntas, cerca de 1,5 mil integrantes em Goiás. Segundo dados do Banco Nacional de Monitoramento de Prisões do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a população carcerária no Estado é de 21 mil presos, em diversos regimes. Isso significa que 1 em cada 14 detentos é integrante de um dos dois grupos.
Falta de efetivo e sistema prisional vulnerável tornam Goiás um terreno fértil para facções
As facções criminosas atuam em todo o território brasileiro, mas encontraram em Goiás um terreno fértil para plantar raízes. O Estado é geograficamente importante, está no Centro do País e faz divisa com cinco Estados e o Distrito Federal. Por isso, trata-se de uma rota importante para o escoamento da droga que chega, principalmente, do Paraguai (maconha) e Bolívia (cocaína). Daqui, os entorpecentes chegam fácil a grandes centros consumidores, como São Paulo e o DF, além de dar acesso aos mercados do exterior.
Em segundo lugar, o sistema prisional é vulnerável, com unidades antigas e falta de efetivo para fazer a segurança. A Penitenciária Odenir Guimarães, por exemplo, foi construída na década de 1960 e nunca passou por uma intervenção ampla. Com capacidade para menos de 800 presos, a unidade já chegou a ter mais de 2 mil, segundo o CNJ.
Atualmente, a Diretoria Geral de Administração Penitenciária (DGAP) ter cerca de 3 mil profissionais, sendo 1,5 mil Agentes de Segurança Prisional e 2,5 mil Vigilantes Prisionais Temporários para cuidar de mais de 120 unidades.
Em terceiro lugar, há o reconhecido déficit no número de policiais.
“Praticamente todas as unidades prisionais de Goiás têm influência dessas facções, em maior ou menor grau”, diz o promotor Luciano Miranda, de Goianésia, ex-coordenador do Centro de Apoio Operacional (CAO) Criminal, do Ministério Público de Goiás. Ano passado, o CAO, munido de dados do Centro de Inteligência do MP, chegou a emitir um alerta de possíveis ataques de facções em Goiás.
Em alguns casos, a DGAP teve de distribuir presos de acordo com a facção. O recém-inaugurado presídio de Anápolis, por exemplo, recebeu líderes do PCC. O de Formosa abriga faccionados do Comando Vermelho. A estratégia visa evitar matanças, como a que ocorreu em janeiro de 2018 no Complexo Prisional de Aparecida, quando nove detentos do semiaberto morreram e outros 14 ficaram feridos. A carnificina obrigou a então ministra do Supremo Tribunal de Justiça, Carmen Lúcia, a realizar uma inspeção no presídio.
Mas, após a visita da ministra, quase nada mudou. “Há alguns anos as facções se instalaram nos presídios goianos e, desde então, elas mantêm o controle do sistema”, diz o deputado federal Delegado Waldir (PSL).
Facções se interiorizaram
Nos últimos anos, as facções criminosas deixaram de atuar somente na Região Metropolitana e ganharam os municípios do interior. A situação se intensificou após a rebelião de janeiro de 2018 no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia. Na época, 84 presos ligados a facções criminosas foram levados para outros presídios.
Essa “interiorização”se reflete na segurança de municípios menores. Em Goianésia, localizada a 177 quilômetros de Goiânia, por exemplo, dos cinco homicídios ocorridos neste ano, quatro estavam relacionados à disputa de poder entre os criminosos faccionados.
Em Caldas Novas, no primeiro trimestre, foram 13 homicídios. Apesar de a Secretaria de Segurança Pública apontar que o número de homicídios tem caído (foram 15 em 2017 e 14 em 2018 no mesmo período), a tensão culminou na troca do comando da Polícia Militar. Na quinta-feira, 11, o coronel Ronny Alves, que já foi comandante da Rotam (Rondas Táticas Metropolitana) e do Giro (Grupo de Intervenção Rápida Ostensiva) assumiu o cargo em substituição ao tenente coronel Francisco Leônidas.
Em 2018, em uma operação da Delegacia de Investigações Criminais (Deic) da Polícia Civil, foi preso em um condomínio de Caldas Novas o piloto Felipe Ramos Morais. Ele é acusado de participar do assassinato de Gegê do Mangue, ocorrido no Ceará. Mangue era apontado como um dos principais líderes do PCC no País.
“O Governo passado decidiu retirar os presos [de Aparecida de Goiânia] e distribuí-los no Estado. O efeito é mais violência no interior”, critica o deputado estadual Major Araújo (PRB), que é membro da Comissão de Segurança da Assembleia Legislativa. Araújo cita como exemplos os casos de Anicuns, Jussara, Ipameri e Cachoeira Dourada. “Sem efetivo policial e equipamentos inadequados, o crime organizado encontra o ambiente favorável para se expandir”, diz.
Nos últimos anos, houve uma intensificação na busca de novos integrantes para os grupos criminosos em Goiás, especialmente na Região Sudoeste do Estado – porta de entrada do tráfico no Estado. De acordo com policiais civis, presídios de Rio Verde, Jataí e Mineiros tornaram-se focos de recrutamento de faccionados.
Goiás é importante polo logístico para o tráfico
A localização geográfica, o território amplo e as divisas permeáveis tornam Goiás um importante polo logístico para as facções criminosas. A maior parte das drogas distribuídas no Brasil vem do Paraguai (maconha) e da Bolívia, passam pelo Mato Grosso e Mato Grosso do Sul e encontram em Goiás o centro de distribuição para grandes mercados. Por isso, dominar o Estado é ter um grande trunfo.
“Goiás é a principal rota rodoviária das drogas, possui aeroportos e locais isolados onde a droga pode esfriar”, explica o ex-secretário de Segurança Pública Irapuan Costa Júnior. Essas vantagens operacionais, segundo o ex-secretário, obrigam que os operadores do tráfico mantenham bases no Estado.
Por isso, as facções criminosas não atuam mais restritas aos presídios, já que é do lado de fora que o comércio fervilha. Em uma operação recente das polícias goianas, foram apreendidos em um condomínio de luxo em Goiânia R$ 21 milhões. As investigações encontraram outros R$ 16 milhões em contas bancárias da quadrilha, ligada ao PCC.
De acordo com Costa Júnior, as investigações revelam a diversificação do ramo de atuação da facção em Goiás. Com tanto dinheiro em mãos, os criminosos atuam como uma organização bancária, alimentada por recursos do tráfico, de assaltos a bancos e ataques a carros-fortes. O grupo também investe em empresas tradicionais para lavar o dinheiro produto do crime.
Para manter o poderio, as facções expandem seus tentáculos. No início de abril, a Polícia Civil deflagrou a Operação Antídoto, que descobriu a influência do Comando Vermelho no Judiciário goiano. O assessor Judiciário Carlos Eduardo Moraes Nunes foi preso junto do advogado Emerson Thadeu Vita Vieira. Nunes é acusado de organizar um esquema de venda de sentenças e desaparecimento de processos para beneficiar integrantes da facção.
Facções agem de forma diferente
Os agentes de segurança percebem que cada uma das duas principais facções que marcam presença em Goiás tem uma forma específica de agir. O Primeiro Comando da Capital é uma organização “empresarial”, já o Comando Vermelho atua de forma mais visceral.
O PCC tem hierarquia rígida, o CV é horizontal. Pela importância logística de Goiás, a facção paulista tem, aqui, a figura chamada “sintonia final”. Trata-se de um posto avançado no organograma do grupo, abaixo apenas da sintonia final, conselho superior composto por poucos e que tem entre os nomes ilustres Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola.
Fontes na Segurança Pública comentam que, nos últimos anos, o PCC tem sido menos rigoroso no processo de seleção de membros. Os recrutas ou são apresentados por padrinhos ou são identificados e forçados pela liderança. Até há bem pouco tempo, todos tinham de pagar uma mensalidade e passar por um processo chamado “batismo”.
Atualmente, há uma espécie de flexibilização dos critérios. “Por isso houve uma explosão no número de faccionados em Goiás”, explica o promotor Luciano Miranda. “Há um aumento significativo no número de batizados em Goiás”, complementa um coronel da Polícia Militar de Goiás, que solicitou anonimato.
O PCC é uma empresa. Tem controle dos faccionados, contabilidade profissional e os braços regionais respondem ao comando nacional. O CV, segundo o coronel ouvido pelo Jornal Opção, tem uma cultura mais “carioca”- termo usado para caracterizar uma certa informalidade na estrutura. “O PCC é empresarial, funciona como um negócio. O Comando Vermelho é mais ‘criminoso'”, explica o ex-secretário Irapuan Costa Júnior.
Polícia goiana faz a sua parte
As autoridades da Segurança Pública falam pouco sobre o assunto. Procurado pelo Jornal Opção, o secretário de Segurança Pública de Goiás, Rodney Miranda preferiu se pronunciar por meio de uma nota lacônica. “Qualquer nível de detalhamento sobre o trabalho feito pelas forças policiais e as providências para diminuir a atuação das facções criminosas no Estado podem colocar em xeque as operações que estão por vir”, diz o texto enviado à reportagem.
O secretário argumenta que o investimento na inteligência para monitorar as facções, tanto nos presídios quanto fora deles, tem “provocado intensa derrocada no poderio desses grupos”. A nota confirma, porém, que as elas têm “forte”atuação no Estado, com ramificações no tráfico de drogas, roubo de bancos, de automóveis e de cargas, “todas elas devidamente monitoradas”.
Titular da Delegacia de Repressão a Ações Criminosas Organizadas (Draco), o delegado Alexandre Barros diz que a atuação da especializada envolve investigações “melindrosas e complexas”, que devem ser tratadas com sigilo. “Estamos fazendo um trabalho detalhado [de identificação e monitoramento] de todos os faccionados em Goiás”, diz.
Responsável pela transferência de oito líderes de facções que estavam em Goiás para presídios federais, Irapuan Costa Júnior diz que o atual secretário “está fazendo uma perseguição” intensa contra os faccionados.
De fato, as forças de segurança têm buscado atacar tanto o PCC quanto o CV. Em dezembro de 2018, 58 integrantes do PCC foram presos na operação Inimigos do Rei. Um deles, identificado apenas como Imperador, era o encarregado de fazer a articulação do grupo goiano com a cúpula nacional da organização.
Na sexta-feira, 12, a Polícia Civil apresentou o resultado da Operação Courier, que apreendeu um fuzil 5.56, uma espingarda calibre 12, quatro pistolas 9 milímetros, além de carregadores e munições. Segundo a Secretaria da Segurança Pública, Aloísio José da Silva mantinha o arsenal, usado por membros de uma das facções na disputa por território e outras ações criminosas. A suspeita é de que o armamento tenha sido usado em cerca de 50 homicídios em Goiás.
Sintomaticamente, tais operações frequentemente atingem homens que já estão atrás das grades. “É interessante [usar] o termo prender, pois os mandados muitas vezes são contra indivíduos que já estão presos comandando a cadeia criminosa”, diz o promotor Luciano Miranda.
É paradoxal, mas, diante de tanto poderio dos criminosos, cada conquista das forças de segurança deve ser reconhecida.
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