Fora de qualquer cenário de crise no sistema prisional, é completamente inócuo falar de cadeias frágeis, superlotação em presídios, legislação penal ultrapassada, julgamentos postergados e alvarás de soltura pendentes. Se alguém se atrever a tanto, vai imitar João Batista e pregar no deserto. Não há caniço agitado pelo vento que queira saber de condição de vida de detentos, desde que eles continuem segregados e não perturbem os que estão “do lado de fora”.
A bem da verdade, o tema nunca foi encarado como prioritário pelos governos. Mais: nunca teve sincera atenção do poder público em geral. Não é só o Executivo que se mostra negligente com a situação das penitenciárias e de tudo que as cerca, embora toda a energia de revolta popular geralmente se concentre nos governantes e embora as esferas do poder –estaduais e federal – acabem optando pelo jogo de acusações mútuas até que o assunto esfrie na mídia.
É fato que existe um passivo muito grande na eficiência da máquina pública para gerir o sistema: recursos contingenciados, obras em ritmo de tartaruga, falta de pessoal e uma dezena de outros itens que, com os episódios graves no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia, voltaram à berlinda. As tragédias, no entanto, seguem um efeito cascata que começa muito antes de qualquer medida que seja tomada pela administração local do sistema. Para tomar Goiás como exemplo, ninguém duvida da capacidade do secretário de Segurança Pública, Ricardo Balestreri, ex-secretário nacional de Segurança Pública, com gabarito acadêmico e técnico para conduzir a pasta. Não dá para duvidar que ele venha tentando fazer sua função da melhor forma possível, mas o drama é muito mais amplo e exige decisões integradas.
Os poderes Judiciário e Legislativo não parecem tão atingidos por tais crises agudas. No entanto, têm tanta responsabilidade pelo que vem ocorrendo. Afinal, o que têm feito deputados e senadores, no papel que lhes cabe, em busca de soluções para tudo o que diz respeito ao sistema prisional? Em que momento além dos pontos críticos – rebeliões e massacres – da história das cadeias brasileiras a pauta do sistema prisional foi prioridade nas discussões parlamentares?
Desde 1976, o Congresso já teve quatro comissões parlamentares de inquérito (CPIs) sobre o tema – em 1976, 1993, 2008 e 2015. Em todos os relatórios produzidos, a mesma conclusão: falência do sistema e necessidade de mudanças nas leis. Nas CPIs mais recentes, o diagnóstico enxerga também a urgência de mais presídios – consequência do que havia sido previsto pelo antropólogo e político Darcy Ribeiro ainda nos anos 80, caso não houvesse priorização do investimento em escolas e educação. O que os relatórios têm gerado? “Jurisprudência” para mais relatórios.
O Judiciário se mostra incomodado com a situação, a ponto de a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e também presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministra Cármen Lúcia, agendar uma visita ao presídio goiano. Vai concluir o de sempre: que as condições dos presos são subumanas, que há superlotação, que é preciso agilizar o ritmo de trabalho do próprio Judiciário. A fama de lentidão do poder não existe à toa: é preciso acelerar julgamentos e decisões sobre os presos, mas algo trava entre o discurso e a ação.
As crises passam, apesar de se agudizarem cada vez mais nos últimos tempos: em dois anos, juntaram-se ao emblemático Carandiru (SP), os nomes de Pedrinhas (MA), Alcaçuz (RN) e Anísio Jobim (AM) no imaginário do pânico dos brasileiros. Talvez as pessoas não se lembrem do nome de nenhuma escola pública de outro Estado, mas muitas delas não esquecem mais o nome desses presídios onde cabeças rolaram pelo pátio e corpos foram carbonizados, entre muitas outras cenas de horror. Logo que a situação é “controlada” pelo Estado – entre aspas, porque dentro da cadeia o poder público se submete às leis dos grupos que ditam a regra, alguns deles da elite do crime organizado –, as leis e medidas deixam de ser “urgentes” para serem procrastinadas.
Executivo, Legislativo e Judiciário sabem tudo o que deve ser feito, há muito tempo. E o motivo pelo qual a letargia sempre vence acaba ficando óbvio: as más condições de vida dos presidiários não comovem a opinião pública. Pelo contrário, boa parte da população e alguns políticos se apressam em dizer que “eles” (os condenados) estão lá porque fizeram por merecer e, assim, merecem também as penas – a oficial, da Justiça, e a extra, dada pelas condições dramáticas do sistema. As mortes nas rebeliões e nas guerras entre grupos nas cadeias são certamente mais comemoradas do que lamentadas pelo senso comum.
Talvez os únicos que capitalizem com as crises no sistema carcerário sejam os adversários políticos dos governos. Mas, em vez de atuarem com propostas alternativas, apostam nos ataques – e de forma ainda mais forte em ano de eleições aos principais cargos majoritários, como é o atual. O povo, inseguro e carente de ouvir o que quer e não o que precisa ouvir, tende a cair na armadilha eleitoral dos candidatos mais espertos, fazendo vista pouco crítica a esses discursos ricos de falácias e paupérrimos de conteúdo: “bandido bom é bandido morto”, “está com pena? Leva para casa!”, “antes chorar a mãe do ladrão do que a minha”.
São expressões ao mesmo tempo radicalismo e alienadas, que tratam a violência nos presídios como fator apenas interno. Como se elas não acarretassem nenhuma sequela ao tecido social fora dos muros das cadeias. Como se o crime organizado não tivesse poder algum para organizar o caos pelas ruas das cidades a partir de uma briga de facções. Como se os furtos, roubos, sequestros e latrocínios do lado de fora não tivessem qualquer correlação com as “metas” estabelecidas pelos chefões da bandidagem — que, ironicamente, se sentem muito mais livres para atuar com a reclusão e as regalias que adquirem pelas distorções do sistema.
A solução para o drama passa pela tomada de consciência da “gente de bem” de que ela será afetada cada vez mais se lavar as mãos pelo que ocorre nos presídios. Enquanto os cidadãos não perceberem que a quantidade de distúrbios e mortes nas prisões influi diretamente no aumento da violência e da insegurança fora deles e se mobilizarem para exigir mudanças, as perspectivas continuarão sombrias.
A solução para o drama passa pela tomada de consciência da “gente de bem” de que ela será afetada cada vez mais se lavar as mãos pelo que ocorre nos presídios. Enquanto os cidadãos não perceberem que a quantidade de distúrbios e mortes nas prisões influi diretamente no aumento da violência e da insegurança fora deles e se mobilizarem para exigir mudanças, as perspectivas continuarão sombrias.
O brasileiro nunca tomou para si, de forma convicta, a educação como um valor nobre e insubstituível. Pouquíssimos candidatos ao Executivo ou ao Legislativo ganharam eleições puxando a bandeira da educação. Agora, talvez, já seja tarde olhar para esse lado enquanto há outro para priorizar. A profecia de Darcy Ribeiro se cumpriu: agora a urgência é resolver a situação dos presos e dos presídios.
Parabéns pela profundidade e qualidade do texto. Isento, técnico, sem partidarismos, humanista. O Brasil precisa de mais exercícios de inteligência desse tipo.
ResponderExcluirAbraço do Ricardo Balestreri